sexta-feira, 1 de maio de 2009

Crónicas da Revelação- Capítulo I

Um fumo negro pairava no ar, brotando de uma fenda tão profunda que chegava ao centro do planeta. Daqui saíam todas as forças das Profundezas, espalhando a fome, a raiva e o ódio por todos os seres da terra de Eldhruil.
Não se avistava vivalma no espaço que rodeava este lugar de pura maldade: todos o evitavam, com medo do que lhes pudesse acontecer. Muitos dos que se aventuraram a entrar neste local tão inóspito nunca mais voltaram, e os poucos que sobreviveram voltavam irreconhecíveis, não só fisicamente, mas também nas suas atitudes, tornando-se bruscos, rudes, arrogantes e maldosos. Mas a esperança ainda residia no coração dos mais crentes, que esperavam uma resposta, um sinal dos seus deuses. E, finalmente, eles responderam.
***
Uma nuvem descia do céu, cada vez mais e mais baixa, aproximando-se da enorme fenda. Se alguém lá estivesse, poderia ter visto a figura imponente em cima da nuvem. Alto, de uma expressão tão suave como uma planta axiusa, Lordgok desceu de uma forma altiva e dirigiu-se à fenda, sem se deixar impressionar pelo ambiente de trevas à sua volta. O seu objectivo era claro e não iria desistir tão facilmente.
Quando chegou à beira da fenda, empunhou o seu majestoso ceptro bem alto e recitou um dos mais complicados feitiços ancestrais que se conhece.
Um grande feixe de luz irrompeu do ceptro, iluminando, por momentos, aquele lugar maldito, mas rapidamente Lordgok se apercebeu de que algo tinha corrido mal: Um monstro, cem vezes maior que o Rei, feito de várias placas de cobre, todas articuladas e vermelhas cor-do-sangue, surgiu ameaçadoramente do centro da fenda. Abriu a boca e expeliu um jacto de fogo muito vivo e outro de uma luz tão negra como a total escuridão, que atingiram Lordgok com toda a sua força. Durante um instante, nada parecia acontecer. E então, Lordgok começou a sentir-se revoltado com a sua família, os seus amigos, enfim, com tudo o que o rodeava.
Com uma invulgar rapidez, subiu para a nuvem, os olhos agora a flamejarem e o ceptro ainda completamente negro, encaminhou-se para o Limite. Mas, mal chegou à entrada da Cidade Aernet, a cidade dos deuses, começou a sentir-se muito tonto, cheio de dores de cabeça. Do ceptro irradiava uma luz tão negra como breu, obscurecendo tudo em volta. Do Rei, uma sombra negra saía, impelida pelas forças do Bem que dominavam a cidade. Por fim, Lordgok desmaiou.
***
Jennya, que na altura tinha apenas 4 anos, era a filha mais nova de Lordgok e Jewya. Altruísta e muito simpática e amistosa, era amada por todos. Naquele momento, encontrava-se no jardim do palácio, a desenhar um lindo pessegueiro em flor, quando ouviu o irmão a chamar a mãe:
- Mamã! É o pai, depressa!
“ Deve estar a passar mais um recado ou coisa assim.” pensou Jennya, mas logo se apercebeu de que se passava algo de errado. “ Johrry parecia-me demasiado preocupado… mas porquê? É melhor ir averiguar o que se passa.”
Enquanto corria, ia organizando as ideias: lembrava-se do pai a falar com a mãe enquanto saía para o jardim, mas não sabia sobre o que era; sabia também que algo preocupava o seu pai já há algum tempo, mas sempre que tocava no assunto ficava bastante atrapalhado, parecia querer esconder algo...seria essa coisa o motivo que gerou tudo o que estava a passar agora?
A saia de pregas e o cabelo negro baloiçavam, enquanto Jennya se apressava, avistando já uma grande multidão às portas da Cidade. Achou estranho estar tanta gente ali, amontoada à volta de alguma coisa, mas só soube exactamente o que se estava a passa quando se aproximou o suficiente para perceber o que diziam:
- Mas como é possível?
- O que aconteceu?
- Ele morreu?
- Não sejas tonta, vê-se logo que não!
- É melhor levarem-no para dentro…
- Mamã, eu quero ver!! Deixa ver, deixa ver, vá lá!
Jennya furou por entre aquele mar de gente até que conseguiu vislumbrar o motivo de tanto alarido: ali, estendido no chão, jazia o corpo inanimado do Rei. Jennya ficou paralisada com o choque, sem querer acreditar no que os seus olhos viam. Nem sequer reagiu quando levaram o seu pai para a Fonte Eterna; continuou ali, especada, sem emitir um som, sem esboçar um gesto.
- Jennya? – Landor tocou-lhe ao de leve para ver se ela reagia. – Jennya? Aernet chama Jennya! – E então, sem qualquer aviso prévio, Jennya desmaiou nos braços do seu primo.

- Mas então, almoçam aqui ou no salão?
Jennya não reagiu logo. Queria concentrar-se na calma em seu redor…
- Nós vamos andando, mas acho que o Landor queira ficar aqui para quando ela acordar…
Queria esquecer a mágoa…
- Será que a senhorita ainda chega a tempo de almoçar?
Finalmente, abriu os olhos e olhou em volta. Estava deitada numa cama de flores de pessegueiro, de laranjeira e de margaridas, com o seu melhor amigo sentado o pé dela. À sua volta, a Deusa da Paz e a Deusa da Água, Linen, suas grandes amigas, conversavam em voz baixa com a Deusa da Terra, Ehlea.
- Estás bem? Pregaste-nos cá um susto! – disse Landor, com ar preocupado.
- Estou óptima. E o papá? Já acordou?
- Sim, mas talvez fosse melhor descansares antes de o ir ver.
- Mas ele já está bom, não está? Quer dizer, já recuperou não é?
- Bem… – respondeu a Deusa da Terra – Sim e não. Recuperou, mas está estranho. Parece que o seu corpo já não é o mesmo.
Ao ver a expressão de Jennya, a Deusa da Paz exclamou, inesperadamente:
- Então, vamos comer?
***
O tempo passou a correr. Quando Jennya tinha já esquecido o incidente, já o seu pai tinha reunido as forças principais para preparar uma nova expedição à Fenda. Naquele momento, estavam todos na sala de reuniões dos Domínios Oficiais, discutindo a melhor forma de conseguirem vencer o inimigo. Por fim, decidiram que desta vez a Rainha iria com o Rei uma vez que eram os deuses mais fortes e que, se acontecesse algo de errado, estes tinham deixado descendentes.

Uma nuvem descia do céu, cada vez mais e mais baixa, aproximando-se da enorme fenda. Mas, desta vez, vinham nela não apenas Lordgok, mas também Jewya, a Rainha dos deuses, de porte gracioso mas robusto, quase tão alta como o rei e de uns olhos azuis tão profundos como o mar, contrastando com os olhos verde-escuros do marido. Quando a nuvem pousou, desceram, concentrados apenas na sua missão.
Mas, nesse preciso instante, uma alma negra, a mesma que tinha saído do corpo do Rei quando este chegou ao Limite, voltou a entrar, sem ninguém dar por nada. Novamente, os olhos de Lordgok ficaram tão vermelhos como fogo, e a sua expressão ficou séria e assustadora.
- Vamos? – perguntou a Rainha, antes de olhar para ele. – É melhor irmos e …Ordie, estás bem?
Lordgok não respondeu. Continuou a fazer uns movimentos esquisitos com o ceptro, sem qualquer nexo. De olhos fechados e uma expressão de completo sofrimento, parecia que tinha perdido completamente o juízo. Jewya, preocupada e apreensiva com esta atitude tão estranha, concentrou todo o seu poder nas mãos e, pensando apenas em controlar o Rei, deixou a magia fluir pelo corpo. Feixes de luz irromperam-lhe das palmas das mãos, tentando alcançar Lordgok e entrelaçá-lo no feitiço, mas sempre que um raio de luz lhe tocava no corpo, desaparecia no mesmo instante. A Rainha, sem saber o que fazer, fez um último esforço para a magia funcionar, mas continuou a não ter sucesso.
E então, sem mais nem menos, ele parou, levantou o ceptro bem alto e gritou:
- Kakirai!
Jewya reconheceu a palavra de imediato: a maldição da Destruição. Desesperada, invocou o feitiço Oducse, tentando proteger-se, mas o feitiço era demasiado fraco para impedir a maldição. Os olhos arregalaram-se de espanto quando o feitiço lhe acertou mesmo no meio do peito, e, com uma expressão assustada e os olhos ainda completamente abertos, Jewya caiu no chão, morta. Foi assim que morreu, injustamente, a rainha preferida das fadas.